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Arte

10/10/2018

Banksy escancara leilões

Destruição de obra de Banksy escancara leilões como novo circo

Folha de São Paulo - Ilustrada

Os aplausos não tinham cessado ainda quando a pintura foi triturada por lâminas escondidas dentro de sua moldura.

No salão da Sotheby’s, em Londres, logo depois de batido o martelo que selou a venda de “Girl with Balloon”, de Banksy, por mais de R$ 5 milhões, houve gritos de surpresa, dedos apontando, olhares atônitos e também gargalhadas na hora em que funcionários da casa de leilões correram para retirar de cena o quadro arruinado, como se socorressem um atropelado que agonizava no asfalto.

Salvaram só parte do rosto da garotinha e seu balão vermelho em formato de coração, mas a destruição causada pelo misterioso autor da obra deve acabar elevando o valor já estratosférico da tela —o que seria só a reprodução de um grafite que primeiro estampou um muro no East End londrino há 14 anos agora entrou para a história.

Banksy


Não foi a primeira vez que um leilão se transforma num circo, mas o episódio orquestrado por Banksy na semana passada trouxe elementos da Broadway ao ambiente sisudo dessas compras bilionárias.

O grafiteiro que até hoje esconde sua identidade, embora já tenha sido identificado pela imprensa britânica como um certo Robin Gunningham morador de Bristol, no litoral inglês, revelou instantes depois em sua conta no Instagram que instalou as lâminas na moldura do quadro.

O mecanismo seria acionado caso a obra fosse a leilão. Dito e feito. Junto das imagens do triturador secreto, Banksy mostrou o momento da venda em que tudo acontece. Alguns dos presentes dizem ter visto alguém com um controle remoto que teria ligado o dispositivo na hora em que soaram as batidas do martelo.

Também dizem ter visto na sala um homem muito parecido com o Gunningham apontado por jornais locais como o elusivo Banksy, que costuma aparecer sempre de capuz e com o rosto todo coberto.

Enquanto isso, a Sotheby’s, uma das maiores casas de leilão do planeta, ainda finge demência, dizendo não saber nada de seus planos secretos. Mesmo que soubesse, e isso é o mais provável dado o rigor da perícia por que passam todas as obras antes de um leilão, nunca poderia admitir, porque desmancharia o teor subversivo da performance.

Sim, performance. Ou truque publicitário, em português mais claro. Banksy é um crítico notório do exótico mercado da arte, um mundo movido a champanhe, jatinhos, galpões climatizados em paraísos fiscais, conchavos secretos e em certos casos até mesmo lavagem de dinheiro.

São muitos os fatores que fazem uma obra se valorizar. O preço depende da importância histórica da peça, do fato de ela ser única ou não, de seu autor e sua reputação no circuito dos museus e das galerias e de quem já comprou.

Esse último ponto é o que mais irrita artistas como Banksy. Num mundo em que a crítica de arte se torna obsoleta e colecionadores ocupam os postos de comando dos grandes museus, determinando quem entra para os acervos —e, portanto, para a história— a partir de suas listinhas de compras, o mercado acaba tendo peso desproporcional na formação dos gostos e da interpretação da obra.

Muito antes de causar todo o furor nesse leilão, aliás, Banksy já zombava das forças desse mercado e de suas telas mais cobiçadas. Numa de suas séries mais controversas, ele recriou clássicos da arte moderna, como as vistas do jardim de Claude Monet em Giverny, na França, mas enfiou neles os desenhos que ele

fazia nos muros das cidades.

Era a sabotagem da arte “high brow” com a energia das ruas, algo que angariou para ele o respeito de uma parcela da crítica, mas também uma esnobada rotunda de outra parte do establishment que ainda vê o grafiteiro como piadista de quinta categoria.

No vernissage da primeira exposição dessa série numa galeria de Londres, além dos VIPs na lista de convidados, estavam 200 ratos que circulavam pela mostra. Filas se formaram na porta para ver sua “arte corrompida”, como batizou essa série de quadros.

Depois da festa, Banksy ainda se disfarçou para pendurar alguns desses mesmos trabalhos nas galerias dos grandes mestres em museus do circuito global, como o Louvre, em Paris, o MoMA, em Nova York, e a Tate, em Londres.

Isso foi há dez anos. Desde então, sua própria obra experimentou valorização voraz, virando ela também um exemplo daquilo que critica.

Seu sucesso mercadológico foi então incorporado ao próprio trabalho, permitindo extravagâncias como “Dismaland”, a megainstalação em que transformou um antigo parque de diversões no cinzento litoral britânico numa Disneylândia às avessas.

Era um pesadelo habitado por versões sinistras dos personagens de desenho animado, entre eles um batalhão de Mickeys endemoniados.

Sua tela que se autodestruiu nessa última venda em Londres agora coroa a escalada sensacionalista em sua obra e faz lembrar outro episódio controverso que parece ter inaugurado a era das

performances nos leilões.

Há uma década, enquanto o mercado financeiro derretia na ressaca do colapso do banco Lehman Brothers, o também britânico Damien Hirst vendeu de uma só vez todas as obras de seu ateliê numa outra filial da Sotheby’s —seus próprios galeristas estavam entre os compradores, tentando exercer um último fiapo de controle sobre os preços do artista mais rico e famoso do planeta.

Banksy agora parece tirar uma casquinha de Hirst, bem aquele que foi o primeiro artista a abraçar seu status de celebridade desavergonhada.



Esta notícia foi publicada no site Folha de São Paulo em 10 de outubro de 2018. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade da autor.

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